Nos primórdios, não havia distinção entre ilícito civil e penal. O Estado, ainda embrionário e impotente perante o individualismo dos cidadãos, não tinha como distinguir entre os atos que, além do dano que causa às partes conflitantes, comprometem o equilíbrio grupal, na medida em que põe em risco a paz social. Na medida em que o Estado foi se conscientizando de sua missão perante o indivíduo é que foi surgindo a idéia da infração penal, no sentido em que hoje a entendemos (ofensa a valores sociais relevantes, encarada sob o aspecto do dano causado à comunidade). E como corolários da proteção a esses valores sociais relevantes surgem a pena e o direito de punir, conferido ao Estado. Ao cabo de uma longa evolução, chegou-se a mais absoluta vedação da aplicação de qualquer pena sem prévia realização de um processo, com a mais ampla defesa (nulla poena sine judicio).
O Direito Processual Penal é o conjunto de princípios e normas que disciplinam a composição das lides penais, por meio da aplicação do Direito Penal. Além desse aspecto, o Direito Processual Penal trata da sistematização dos órgãos de jurisdição e respectivos auxiliares, bem como da persecução penal. Segundo Tourinho Filho (2010), o Direito Processual Penal tem um caráter instrumental, ou seja, é um meio, um instrumento para fazer atuar o Direito Penal, uma vez que este é desprovido de coação direta e o Estado autolimitou o seu jus puniendi. Logo, não se concebe a aplicação de pena sem processo. Nulla poena sine judicio; nulla poena sine judice (nenhuma pena pode ser imposta sem processo; nenhuma pena pode ser imposta senão pelo juiz).
Na área criminal vige o princípio nulla poena sine judicio, o qual significa que a pena não pode ser aplicada sem processo anterior. Não se admite nenhuma espécie de transação entre o agente e o Estado. Mesmo que o acusado manifeste expressamente sua culpa e seu desejo de submissão à pena, não poderá o Estado, sem o processo, executar o direito de punir. O princípio nulla poena sine judicio, inserto na maioria dos ordenamentos jurídicos dos povos civilizados, encontra, em nossa sistemática, proteção no artigo 345 do Código Penal, que tipifica e sanciona o crime de “fazer justiça com as próprias mãos”: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”. Os romanos já puniam este delito, do que se conclui que a proteção do princípio não é recente. Mas existiram e existem exceções ao princípio. Os exemplos históricos de inflição de pena sem processo nos são trazidos por Eugenio Florian: o procedimento chamado palatino, pelo qual o juiz, em caso de flagrante delito, podia impor uma pena sem procedimento; pactos sobre a pena entre o juiz e o acusado que ocorriam em Nápole.
Dois exemplos atuais no exterior de exceção ao princípio, Cintra, Grinover e Dinamarco nos lembram do caso de submissão à pena do direito inglês; transação no direito americano entre a acusação e a defesa para que seja imposta pena de delito de menor gravidade que o imputado ao réu. No Brasil, a Lei 9.099/1995, a qual dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, regulamenta a aceitação de proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade nas infrações penais de menor potencial ofensivo. Trata-se de hipótese excepcional de aplicação de pena sem processo. Não podendo a pena ser aplicada, em princípio, sem processo, sendo o processo o meio pelo qual se aplica o direito penal para absolver os inocentes e condenar os culpados, sendo no processo que o acusado terá de pleitear sua liberdade, a importância do direito processual penal está em que a efetiva e correta aplicação de suas normas representa uma garantia individual do cidadão. É a garantia de que ninguém será punido sem a prévia formação da culpa em juízo. É a proteção contra o abuso. É o Estado de Direito “desconfiando de si mesmo”. Dando relevância a essa noção do processo como garantia individual estão as palavras de Ferri: “enquanto que o Código Penal é o ordenamento dos criminosos, aos quais se aplica uma vez comprovada sua participação no delito, o Código de Processo Penal é o código dos homens honrados, que podem, por erro ou maldade de alguém, ser suspeitos de um delito”.
Identifica-se atualmente entre os penalistas aqueles que têm certa tendência para defender um endurecimento da legislação penal, tornando mais severa a cominação das penas e os regimes de cumprimento destas, exigindo a extinção de certos benefícios processuais. Estes se identificam com o chamado Movimento de Lei e Ordem, donde se ramifica, por exemplo, o direito penal do inimigo. São também taxados de punitivistas. Defendem que o Direito Penal deve ser a prima ratio, ou seja, a solução primordial para a maioria dos problemas da sociedade, e ainda, que as garantias do indivíduo sujeito à persecução penal devem ser as mínimas possíveis com vistas a preservar a preponderância do Estado em face dos criminosos. No Brasil, não identificamos nenhum jurista de renome que adote predominante e abertamente esta linha de pensamento em sua forma extremada. Há alguns com claras tendências punitivistas, mas que não chegam, por exemplo, a defender abertamente o direito penal do inimigo. De outro lado, temos os minimalistas, propugnadores da ideia de que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, ou seja, somente deve atuar quando as outras disciplinas jurídicas se mostrarem ineficientes para inibir certas condutas, e ainda, exclusivamente naquelas situações onde se identifiquem graves violações a bens jurídicos. Essa corrente, apesar de não se confundir com o garantismo penal, tem forte identidade com este, pois nela também se sobrelevam as garantias individuais em contraponto ao arbítrio do Estado em matéria criminal.
Os garantistas entendem que o delinquente deve ser investigado, processado, condenado e punido, porém tudo deve ser feito com respeito às mais amplas garantias inerentes à sua condição humana e de cidadão. A teoria garantista sustenta-se em dez axiomas e o Nulla poene sine judicio é um deles. (GRECO, 2007, v. 1, pp. 12-13). Não se pode negar o caráter instrumental do Direito Processual Penal, porquanto constitui ele um meio, um instrumento para fazer atuar o Direito Material. A propósito, essa concepção instrumental do processo se inspira, basicamente, em duas considerações: a) aspecto lógico – o direito processual penal está ordenado segundo uma reconstrução histórica, não como fim em si mesmo, senão como meio, como instrumento para conseguir um fim que preexiste a ele e o transcende, a saber, a atuação do Direito Material (o direito material tem necessidade, para a sua atuação, de instrumentos processuais, sem que estes se identifiquem com aquele); e o b) aspecto jurídico – a concepção do caráter instrumental do processo explica a distinção entre a admissibilidade da demanda e fundamento da demanda, ou melhor, entre indagação sobre os pressupostos processuais e indagação sobre o mérito. Releva notar, ainda, que a instrumentalidade do Direito Processual Penal torna-se mais evidente quando se constata que o Direito Penal não possui um método de coação direta, já que o próprio Estado autolimitou o seu Jus Puniendi, exigindo-se assim, necessariamente, que a pena seja aplicada por meio de um devido processo legal (CF, art. 5º, LV).
Ademais, os princípios do nulla poena sine judice e nulla poena sine judicio, elevados à categoria de dogma constitucional, e segundo os quais nenhuma pena poderá ser imposta senão pelo Órgão Jurisdicional e por meio do regular processo, impedem a aplicação da sanctio júris sem o devido processo. Nesse sentido, então, o cânon nulla poena sine judicio é posto não só como autolimitação da função punitiva do Estado, mas ainda como limite à vontade do particular, ao qual é negada a faculdade de sujeitar-se à pena. Desta forma, tal princípio dá lugar aquele nexo de subordinação entre processo e aplicação da sanção penal que não encontra correspondência em nenhum outro ramo do direito.
Portanto, a sanção penal só se concretiza no mundo dos fatos por meio da norma processual, inviabilizando, assim, qualquer acordo que seja feito entre os sujeitos ativo e passivo do processo, que venha a afastar a norma processual. Logo, não se pode dizer que a transação penal, prevista na Lei nº9.099/95, de alguma forma flexibilizou este vínculo de dependência entre os ramos do direito material e processual, pois, como salienta Fernando da Costa Tourinho Filho, a pena aplicável por meio de tal instituto processual não decorre exclusivamente do acordo celebrado entre as partes, já que depende da apreciação e aplicação por parte do juiz. Este vínculo entre os ramos dos Direitos Penal e Processual Penal não é excepcionado nem mesmo nas hipóteses de ação penal privada, em que o jus persequendi in judicio (direito de perseguir em Juízo) foi transferido para o particular, pois não será possível a inflação da pena sem o devido processo.
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